No último dia 20 de agosto, data da autuação, a empresa R&R Coisas de Forno, em Crato-CE, foi condenada pela 2° Vara do Trabalho da Região Metropolitana do Cariri, bem como sua proprietária Rita Eliane Santiago Pinheiro, a pagar indenização por danos morais e todos os direitos trabalhistas devidos

Após 27 anos de exploração análoga à escravidão e recusa de direitos humanos e trabalhistas, vítima denuncia empresa em Crato-CE

No último dia 20 de agosto, data da autuação, a empresa R&R Coisas de Forno, em Crato-CE, foi condenada pela 2° Vara do Trabalho da Região Metropolitana do Cariri, bem como sua proprietária Rita Eliane Santiago Pinheiro, a pagar indenização por danos morais e todos os direitos trabalhistas devidos, por manter uma menina, na época com 10 anos de idade, em situação de trabalho infantil análogo à escravidão. Em nota, a defesa da empresa nega as acusações e afirma que a relação com a vítima era de acolhimento e afeto e que a mesma “era como se fosse da família”. A causa trabalhista foi atribuído o valor de R$ 336.995,08 (trezentos e trinta e seis mil, novecentos e cinquenta e cinco reais, e oito centavos).

Para o Tribunal Regional do Trabalho (TRT), o valor de R$ 150.000,00 arbitrado fora os danos morais e honorários, não se mostra suficiente, sendo o mais adequado para solucionar o conflito o montante de R$ 1.0000.000,00 (um milhão de reais), de acordo com o quadro narrado dos fatos, as provações e sofrimento que marcaram a vida da vítima.

A reclamante fez a reclamação trabalhista a justiça contra a microempreendora, pedindo reconhecimento de vínculo empregatício, rescisão indireta do contrato de trabalho, assinatura de CTPS e verbas rescisórias e trabalhistas, horas extras, diferenças salariais e indenização por danos morais decorrentes de labor em condições análogas à escravidão durante a sua infância e adolescência.

A vítima começou a trabalhar na casa da empresária aos 10 anos de idade, ela saiu da casa da avó e foi morar com os empregadores – a empresária, marido e filhos. Cuidava do bebê do casal, produzia os biscoitos na fábrica dos patrões, a R&R Coisas de Forno. Também cuidava de tarefas domésticas como cozinhar, faxinar e lavar roupas.

Na época a criança recebia R$ 30 por mês pelos serviços, valor repassado para a avó da menina, que vivia em situação de miséria e vulnerabilidade social e acreditava que mandando a neta para este trabalho, ela teria uma vida melhor morando com a família dos patrões. A vítima ainda criança, dormia numa rede, em um quarto sem janelas, “o quartinho da empregada”, dividido com outra jovem, na casa do casal.

O relato da vítima é de que trabalhava de seis da manhã às dez da noite na casa da família. Em conversa com a reportagem do portal Brasil de Fato (veículo base para esta matéria, bem como o processo judicial público N° 0001462-48.2024.5.07.0028), a reclamante disse que quando o bebê que ela cuidava dormia, ia para a fábrica, ajudar as demais funcionárias na produção dos biscoitos. Nisso, ela trabalhava até o início da madrugada.

Os abusos à vítima começaram em 1997, mas o caso só chegou à Justiça em 2024, quando a vítima, com 37 anos, procurou apoio jurídico para receber o salário de um mês. Ela já não morava mais na casa dos patrões, mas ainda trabalhava para eles, por um valor abaixo do salário minímo.

Os patrões se recusaram a realizar o pagamento, porque naquele mês, a mulher teria faltado por três dias para cuidar do filho doente, que tinha apenas um ano. Teve as faltas descontadas do salário e recebeu apenas R$ 100 como pagamento. Por sugestão do marido, a vítima decidiu procurar a advogada, Lívia Maria Nascimento Silva, mestre em direitos humanos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que trabalha no caso, juntamente com o advogado Carlos Augusto Matos de Lacerda.

A reclamante não podia frequentar a escola durante toda sua infância, ela só iniciou os estudos aos 15 anos de idade, ou seja, cinco anos depois de estar trabalhando na residência, por motivos de muitas demandas de trabalho e necessidade de se “sustentar” por meio dele. Ela não concluiu o ensino fundamental, sabia apenas ler, escrever e fazer contas básicas.

Na ação trabalhista movida, também consta que a vítima sofria agressões físicas quando os filhos da empresária não obedeciam aos pais e estes atribuíam a culpa a reclamante. Todo esse tempo a mulher sofreu situações de violência moral, física e psicológica, tendo como um dos relatos mais fortes do processo judicial, ter sofrido um episódio de ser obrigada a “comer comida de cachorro” cozida junto com arroz e dada a ela como forma de chacota e humilhação, além de “ser proibida de sair de casa, ter contato com a família ou comunidade externa, com ampla restrição de liberdade”, o que além da condição de escravidão pelas exaustivas horas trabalhadas, a colocava também na situação de cativeiro, com a privação da liberdade.

A reclamante só deixou a casa dos patrões, quando engravidou do seu primeiro filho, em 2011, e foi morar com o pai da criança. Nesse período, ficou afastada do trabalho por conta do puerpério, sem receber nenhum valor, e por necessidade, retornou ao trabalho 30 dias após o parto. Nessa época, não cuidava mais dos filhos da empresária, que se tornaram adolescentes, mas trabalhava nos serviços da fábrica de biscoitos: produção dos biscoitos, doces, bolos, embalagens e limpeza do local.

Na fábrica, a rotina de trabalho era de “segunda a sexta de 6h às 18h, com pausa de 5 minutos para almoço, e aos sábados meio período sem pausa, mediante salário mínimo de R$ 600,00, pagos em espécie, sem registro na carteira de trabalho e sem nenhum direito trabalhista assegurado, como férias, 13° salário, contribuições previdenciárias, recolhimento do FGTS e licença maternidade”. Na fábrica ela trabalhava sem nenhum equipamento de segurança para proteção a queimaduras no forno e fogão, além do envelopamento dos alimentos produzidos e cuidados da cafeteria.

Em 2022, a reclamante teve a gravidez do seu segundo filho e também não recebeu nenhum direito em termos de proteção à maternidade. Quando em julho de 2024, após receber apenas R$ 100,00 de contraprestação por ter justificado sua falta no trabalho em virtude do adoecimento do filho mais novo. Essa situação do desconto do salário que nunca condizia com o que deveria ser pago perante o valor do salário minímo e o cansaço da vítima por violação de tantos direitos ao longo da vida, fez com que ela procurasse a via judicial.

Agora, a vítima está com ação judicial aberta contra os empregadores, aguardando seu direito as verbas rescisórias e tudo que sofreu pelos 27 anos de exploração sem direitos resguardados, exploração de mão de obra infantil e como mulher com recorte racial por ser negra. Além da relação trabalhista abusiva que gerou dependência financeira para sobrevivência da vítima e sua família.

No processo, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) concluiu que: “o que se percebe é que as privações a que a reclamante foi submetida, especialmente aquelas relacionadas à educação formal e salário, submeteram-na a uma espécie tão aguda de prejuízo intelectual, que é difícil afirmar se a autora, desligando-se das rés com 36 anos de idade, conseguirá, de alguma forma, adquirir condições de desenvolver qualquer tipo de atividade legal que venha a garantir a ela condições de, com independência, sobreviver na nossa sociedade contemporânea, conseguindo recursos para residir, alimentar-se, vestir-se, medicar-se, etc”.

Em nota, a empresa R&R Coisas de Forno e a proprietária, vem a público esclarecer os fatos e segundo a reclamada/acusada, a empresária Rita Eliane Santiago Pinheiro, e as filhas (uma contadora e a outra filha advogada) a vítima “era tratado como se fosse da família”.

“Desde o início, a relação com a Reclamante foi marcada por acolhimento e afeto. De fato, a Reclamante residiu por um período na casa da família, entre o período de 1997 e 1999, há quase 30 anos atrás, onde foi tratada com dignidade, carinho e auxílio mútuo. A relação nunca foi de escravidão ou violência, mas de amizade e cumplicidade, que se estendeu ao longo dos anos, com a Reclamante retornando à convivência e ao trabalho em diferentes momentos, já na vida adulta”.

Na nota, os acusados reiteram que a reclamante sempre teve liberdade de ir e vir, seu acesso aos estudos jamais foi impedido e todo o serviço prestado foi devidamente remunerado. Também reforçam que a história da família foi construída com trabalho, honestidade e superação. Que são humildes e uma pequena empresa familiar que luta para crescer, de maneira justa e transparente e prezam pela ética em todas as relações. A sentença não é definitiva, a empresa e a microempreendora podem recorrer e submeterão recurso à causa.

De acordo com o processo judicial, os advogados da vítima também reafirmam que a empresa possui práticas trabalhistas abusivas a outros trabalhadores, como também irregularidades à direitos trabalhistas, o que deve ser averiguado segundo a defesa da reclamante, pelo Ministério do Trabalho, para que essa situação não se repita com outras vítimas:

“A reiteração de práticas trabalhistas abusivas por parte da empresa reclamada contra seus trabalhadores aparentemente já se tornou comum em sua gerência, basta ver os processos trabalhistas que tramitaram neste Tribunal em seu nome. Em todos os casos há ausência de assinatura da CTPS e a violação contra direitos básicos decorrentes da relação laboral, além da condição de vulnerabilidade de raça, classe, gênero e local de moradia que se encontram as trabalhadoras”.

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Dalila da Silva

Jornalista graduada pela UFCA/CE, Produtora Audiovisual, Redatora e Revisora Textual.

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