Reconhecido como o maior xilógrafo do Brasil, o artista pernambucano faleceu em julho de 2024, mas seu universo visual e afetivo segue vivo nas mãos dos filhos e netos que perpetuam seu olhar lúdico sobre o sertão
No dia 26 de julho de 2024, o Brasil perdeu J. Borges, mestre da xilogravura, poeta do povo e principal destaque de uma das manifestações mais populares da cultura brasileira: a xilogravura. Nascido em Bezerros (PE), iniciou sua trajetória artística nos anos 1960 ilustrando seus próprios cordéis e acabou por transformar a xilogravura na principal linguagem visual e poética do sertão. Com um traço único, cores vibrantes e narrativas que misturam fé, humor e cotidiano, conquistou o Brasil e o mundo, sendo reconhecido pela Unesco, pelas Nações Unidas e declarado um dos patrimônios vivos de Pernambuco. Um ano após sua partida, sua presença continua impressa nas matrizes, nas histórias e na continuidade desse fazer nas mãos de filhos, netos e noras.
Para Lucas Lassen, curador de arte popular e diretor criativo da Paiol — marca que mantém há anos uma relação próxima com a família Borges —, a obra do mestre vai além da estética. “Ele não apenas registrou o sertão, mas o reinventou em imagens que atravessam o tempo, criando um vocabulário visual para aquilo que antes era apenas oral ou sensorial. Seu traço e linguagem deu rosto à sabedoria popular, às anedotas, aos causos, ao humor e às típicas tradições de todo o Nordeste. Valorizar a produção e continuidade de sua família é manter viva essa memória coletiva, não só preservando o passado, mas garantindo que essa cultura continue existindo no futuro”, completa.
Abaixo, conheça alguns dos principais herdeiros diretos da tradição do artista.
J. Miguel – Tradição e resistência
Filho de J. Borges, J. Miguel começou a se aventurar na xilogravura ainda na infância, por volta dos 12 anos, enquanto ajudava o pai na gráfica em que eles imprimiam os cordéis. Com receio de ser repreendido, esculpia suas primeiras matrizes escondido, até que foi incentivado pela mãe a mostrar o trabalho. A reação de J. Borges foi de total apoio, o que acabou sendo o impulso necessário para que ele seguisse firme no caminho da arte.
Sua primeira matriz foi uma representação da icônica Asa Branca. Desde então, já são mais de 50 anos dedicados à xilogravura, com obras que circularam por todo o Brasil e por diversos países. Uma de suas criações mais recentes é uma homenagem à trajetória múltipla de J. Borges, retratando diversas profissões que ele exerceu para além do artista. Hoje, seu filho José Jefferson, de 33 anos, começa a se aventurar pelo mesmo caminho, dando continuidade à linhagem e ajudando a manter viva a tradição da família.
Pablo Borges – o filho “carne e unha”
Sendo o caçula por alguns anos, Pablo Borges cresceu entre tintas e matrizes. Desde os 4 já acompanhava o pai no ateliê e, aos 7, arriscou suas primeiras xilogravuras — que logo foram vendidas. Aos 11, a pedido do pai, o ajudou numa encomenda importante e sentiu que esta era a chancela que precisava. Com 15 anos, passou a viajar e a representar a tradição da família em feiras, palestras e eventos. Hoje, além de xilógrafo, ele está preparando um livro que conta a trajetória do mestre em primeira pessoa. Além de administrar o acervo de Borges, também está à frente da criação do Museu J. Borges, previsto para inaugurar em dezembro de 2025, data em que pretende lançar o livro. Considera que o pai foi seu melhor amigo — são “carne e unha”. Casado e pai de duas meninas, vê na filha mais velha o mesmo encantamento que teve pela arte. Seu traço mantém a essência da família, mas revela as nuances de sua geração, nascida nos anos 1990.
Edna Silva – A nora que coloca as mulheres em evidência
De família de artesãos, Edna Silva cresceu entre tintas, brinquedos populares e o ofício de seu pai, que também foi mestre artesão. Ainda adolescente, fez diversos cursos de pintura, mas foi a partir do namoro com o Carlos, um dos filhos de J. Borges, que conheceu mais de perto o universo da xilogravura. Começou ajudando no ateliê e, por 14 anos, trabalhou diretamente com o sogro. Em 2022, iniciou sua trajetória solo, participando de feiras como a ExpoMinas, FENEARTE e outras pelo Brasil. Em suas gravuras, o sertão é presença constante, mas o foco está na figura feminina: rendeiras, artistas, indígenas, mulheres nordestinas e não nordestinas — todas ganham espaço em cenas cotidianas, festivas ou simbólicas. Também realiza trabalhos personalizados, como retratos de casais, congressos e homenagens institucionais, sempre com base nas histórias que recebe. Seu olhar e traço ajudam a expandir o legado da xilogravura com sensibilidade e representatividade.
Bacaro Borges – O caçula
Mais jovem entre os filhos que seguiram os passos de J. Borges, Bacaro Borges, 24 anos, teve o primeiro contato com a xilogravura ainda criança, aos cinco anos, incentivado pelo pai e pelos irmãos mais velhos. Seu traço carrega a tradição familiar, mas se destaca por dialogar com as questões do presente — da política às pautas sociais e digitais que atravessam sua geração.
Desde janeiro de 2024, com ateliê próprio em Bezerros, Bacaro representa uma nova energia para a arte da xilogravura: inquieto, conectado e aberto ao mundo. Embora mantenha uma estética que remete ao imaginário nordestino tão característico das obras de seu pai, busca inspiração nas demandas atuais, refletindo temas sociais, políticos e contemporâneos em sua produção.
Tem apostado em novas formas de circulação para suas criações, aplicando as gravuras em azulejos, camisetas e outros suportes. Em 2024, assinou as ilustrações do Festival de Inverno de Garanhuns – FIG e está iniciando um projeto para receber excursões e ministrar oficinas em seu ateliê, ampliando o alcance da arte popular entre novos públicos.
Gustavo Borges – O início da terceira geração
Gustavo é o primeiro neto a abraçar a técnica profissionalmente – Arquivo pessoal
Com apenas 21 anos, Gustavo Borges, neto de J. Borges e filho de Cícero, representa um elo entre o legado familiar e as dinâmicas do mundo contemporâneo. Começou ainda criança, brincando no ateliê do avô, mas aos 7 ou 8 anos já fazia suas primeiras matrizes com seriedade. Durante o ensino médio, teve certeza: queria seguir a profissão e transformar a xilogravura em seu caminho de vida.
Hoje, é o primeiro membro da terceira geração da família a abraçar o ofício como profissão. Atua há cerca de quatro anos, produzindo em um espaço montado na casa da avó materna, e já participa de feiras como a FENEARTE, além de vender suas obras pelas redes sociais, WhatsApp e em seu site. Seus trabalhos trazem o imaginário nordestino com traços mais modernos, destacando elementos como pássaros, cactos e plantas da caatinga. Com o olhar atento da juventude, Gustavo sonha em ter seu próprio ateliê em Bezerros e contribuir ativamente para que o nome da família Borges siga ecoando.
“Conheço o Bacaro desde pequeno, vi o Pablo crescer entre matrizes e feiras, acompanhei de perto os primeiros passos da Edna na gravura. É bonito ver como cada um encontrou seu caminho dentro desse universo, mantendo o legado do J. Borges vivo, mas com vozes próprias”, finaliza Lucas Lassen. “Para nós, da Paiol, é uma alegria poder contribuir com essa continuidade — seja apoiando os artistas, divulgando seus trabalhos ou criando pontes com novos públicos.
As xilogravuras da família Borges estão disponíveis na loja virtual: www.lojapaiol.com.br.